Numa entrevista à Pública no passado dia 12, pelas linhas e entrelinhas traçadas por Anabela Mota Ribeiro, António Lobo Antunes, finta, esquiva-se e chuta para canto, sempre que o jogo aproxima um golo à baliza dos afectos. A propósito da confissão de que apanhava pancada, Anabela Mota Ribeiro deixa no ar a frase: Normalmente não fala disso. Fala é de não lhe darem beijos ou um prato com bolachas e leite quando estava doente. Lobo Antunes prossegue o seu jogo, noutra direcção. Ela, estrategicamente distraída, deixa-o ir para mais à frente tornar a frase solta nisto: A pergunta é: porque fala menos da violência física que da violência emocional. De não ter sido mimado. O menino-homem dribla e brinca com a bola. Não responde. Ela deixa-o entretido, para que seja ele a distrair-se e, mais à frente, implacável: No Arquipélago da Memória escreve: "Se me abraçassem, recusava indignado, e no entanto abracem-me." E a outra, referindo-se à personagem Mãe: "Uma ocasião pegou-me na cara, tive medo que me desse um beijo". Desta vez já não fugiu. Falava-se não de si mas das suas personagens... Na resposta, depois de uma reflexão final em que diz: "Temos tanta dificuldade em aceitar aquilo que mais desejamos", é ele quem acaba por fazer uma pergunta: "As pessoas deste livro pedem muita ternura, é?". A entrevista podia ter acabado ali.
No recém-publicado Sinto Muito de Nuno Lobo Antunes, o texto introdução do autor começa assim: "Em criança, agarrado ao meu peluche, sentia-me órfão de pais vivos, filho único de seis irmãos. Não me sobrava inteligência, não seduzia pela beleza. Vulgar, portanto, igual às outras crianças, as que não eram lá de casa. Foi talvez por isso que a minha mãe disse, um dia, que de mim não queria mais de um «dez». Profecia que foi uma sentença que, obedientemente, cumpri toda a vida." Mais à frente esclarece: "A minha relação com a Medicina foi precoce. Adoeci criança, e a coisa mais notável que fiz até aos vinte anos foi quase ter morrido. A sério, todos os outros tinham graças para contar, tiradas geniais, ingenuidades soberbas de criança. Pela minha parte, nasci prematuro e, não satisfeito com isso, perdi peso. Além do mais, tive uma peritonite aos três anos de idade, em Agosto, o que era duplamente inconveniente. Ficou-me, no entanto, a imagem da criada a passar na ombreira da porta, tomando conta, e também o egoísmo com que guardei uns carrinhos de pista que alguém me ofereceu. Não deixei ninguém brincar, e paguei com isso o preço do remorso que ainda hoje me aflige."
Tendo coincidido em tempos de leitura quase simultâneos, estes dois registos, destes dois irmãos, não puderam deixar de me agitar as águas das emoções. Sendo homens e irmãos as suas palavras são ainda mais reveladoras. Reveladoras de um mundo masculino que se insiste em manter fechado, a cadeado, ou trancado a sete chaves. O que mais me impressionou, tratando-se de homens bem maduros, foi a visível inconformidade, até mesmo indignação e incómodo, que ainda guardam em relação a uma infância vazia de afectos. Mas, apesar de tudo, é mais estranho pensar que o mundo dos afectos ainda seja tido como um monopólio feminino. Se é assim, onde está o colo da mulher-mãe que lhes faltou? E que mulheres-amantes se cruzaram na vida destes meninos-homens para que este colo ainda permaneça por saciar?
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